sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013


Obsessão múltipla
Nubor  Orlando  Facure


Dr. Moacyr entra no consultório trazendo seu neto de 26 anos. Depois de lembrar de momentos em que cruzamos pela vida acadêmica Dr. Moacyr faz as apresentações de Marcinho, o neto mimado, porte atlético, tatuado em braços e panturrilhas, olhos espertos, espantados,  correndo para um lado e para outro da minha sala. Mas, o rapaz é muito agradável, educação de família rica, viajado, proza fácil, tem muitos amigos, na verdade todo mundo gosta muito dele ali onde moram. Está proibido de sair com a moto e, por exaustão a mãe o convenceu de ir passar o dia com o avô que o sustenta,  acompanha até a academia de ginástica, assistem televisão juntos, mas, seu trabalho médico não lhe permite estar com Marcinho o tempo todo – vez por outra o rapaz sai com amigos do condomínio. De repente o Marcinho se levanta, anda pela sala, faz umas contrações esquisitas com a face, meche a cabeça com se levasse um susto, tem trejeitos com o corpo e ao passar a tocar nos objetos da minha mesa, quadros da parede, tudo ele o faz estabanado, bate uma coisa aqui outra ali, tropeça na própria cadeira, pede desculpas uma atrás da outra (para mim, esses pequenos sinais são sugestivos de perturbação espiritual naqueles instantes) depois ele começa a delirar um discurso confuso, místico e tecnológico. Doutor Nubor vou lhe trazer a fórmula que me mandaram, eles tem como captar energia do ar, eles falam comigo na tomada da televisão, até minha mãe já ouviu a voz deles, é nítido, tem uma energia que deixa cheiro na ar – dá para o senhor sentir se for lá em casa
Esquizofrenia, bipolaridade, abuso de droga, tudo isso já foi motivo para encaminha-lo para internações que se repetem, melhora dois ou três meses e tudo volta como antes.
O avô, me comove, vejo lágrimas nos seus olhos,  me foge qualquer palavra para lhe consolar, sente-se o quanto ele ama esse neto, repete com carinho que o moço é uma ótima pessoa, quando está bom é prestativo, ajuda até em tarefa nos arquivos do consultório. É uma companhia e tanto, como vai longe a proza com ele.
Marcinho está nesse vai e vem há 4 anos. Não é difícil acreditar no que disseram na reuniões do Centro Espírita que o avô frequenta – são grupos perturbadores, cobranças de desatinos passados e gente perturbadora, feroz mesmo, que prometem não lhe dar trégua.
Casos dessa gravidade levam anos, talvez vidas umas após a outra para se equilibrar

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


A obsessão e suas máscaras
Nubor Orlando Facure

Erotides chega na psiquiatria tomada de intensa catatonia. Além daquela rigidez típica ela está desalinhada da cabeça aos pés, as roupas sujas, parecem rotas em alguns pedaços– o diagnóstico de esquizofrenia foi sugerido ha 6 meses – ela falava com os vultos que lhe apareciam – gritava, teimava, atirava objetos – várias vezes foi contida à força. De repente fica quieta, se isola, chora aos soluços – tem-se a impressão que seus gritos de dor se referem a alguém que esta lhe estapeando.
A mãe conta que ela levou a filha a um centro espírita. O facultativo, meio ríspido, recusa ouvir – disse que essa coisa de demônio é crendice
A medicação traz grande melhora resgatando em Erotides o equilíbrio perdido
Eu, porém, quis ouvir o que foi falado no Centro – é uma postura que ha anos venho propondo aos que trabalham comigo – vamos dar toda atenção ao paciente, ele está em primeiro lugar, não as minhas vaidades acadêmicas, crendice mesmo, a Ciência médica também tem, e muitas demoram a serem desmistificada – basta ver os remédios e as cirurgias para emagrecer, sem esquecer da lobotomia frontal de tenebroso passado.
Erotides num passado recente induziu sua irmã mais velha a se livrar do marido, rico fazendeiro em Pernambuco. O crime foi mal executado e ambos – a irmã e o cunhado - falecem em acidente de carro
Hoje a obsessão está francamente instalada – as autoridades não caracterizaram o crime, o psiquiatra não acolheu a justificativa maior para o transtorno – que pena, as noções de doenças espirituais que hoje as Faculdades de Medicina estão estudando, não tem nada a ver com a ingerência do demônio medieval, essa confusão já ficou para traz – hoje, os tratados médicos já incluem a obsessão e a possessão dentro de sua classificação nosológica – é melhor estudar agora, porque, mais cedo ou mais tarde o futuro nos trará as luzes necessárias



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Professor Sanvito


Professor Sanvito
Nubor Orlando Facure


Ele costumava dizer que o melhor método de aprendizado é você “esfregar” seu cérebro no cérebro de quem sabe mais
É uma metáfora perigosa, cada cérebro tem conteúdo próprio e nem tudo que é do outro nos convém
Dr. Sanvito é de um talento impar para dar aula – daquele tipo de professor que aprisiona a atenção do ouvinte - é neurologista da velha guarda (Santa Casa de S.P) que conviveu e, assim como eu,  aprendeu muito de semiologia neurológica com o Professor Julião (considerado um dos melhores do mundo pelo Professor Gastaut de Paris) – fui seu assistente durante 7 anos na Unicamp vindo a substituí-lo em 1973
Certa ocasião o Dr. Sanvito veio nos dar uma aula – “A Neurologia das mãos” – são muito poucos os médicos que teriam a competência para falar durante uma hora sobre a análise neurológica da mão, dos gestos que se faz com elas, das paralisias dos nervos da mão, de suas atrofias, de deformações congênitas, o quanto a genética as compromete, dos seus tremores delicados que o álcool melhora ou, dos tremores grosseiros que a carne piora, dos trejeitos patológicos, das posturas histéricas, dos Tics, das distonias, das atetoses quando a mão se enrola sobre si mesmo, das coréias que fazem a mão dançar ou “ordenhar leite” quando aperta a mão dos outros. A mão que condena, que agride, que acaricia,  que denuncia, que abençoa e as mãos que desprezam ou aquelas que perdoam, as mãos de Eurídice postas em súplica antes que Gumercindo enraivecido a mate.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Um estouro na estrada


Um estouro na estrada
Nubor Orlando Facure


Os causos que conto são verdadeiros e acontecidos, outros inventados. Para alguns pedaços preciso pedir à Deus para dar o devido desconto quando cometo omissão ou exagero.
Mais esse é um que merece registro:
Deve ter sido 1976, convidamos o Professor Lefevre para uma palestra aqui em Campinas – uma aula especial no anfiteatro da antiga e carcomida Santa Casa – o famoso “Paulistão“,  sujo e sem qualquer conforto – mas, cheio de histórias daquelas aulas magistrais das Teses de Doutorado no início da Faculdade de Medicina – galhardamente, eram um espetáculo social.
Desfrutei de aulas, visitas à enfermaria e reuniões de casos no HC em São Paulo na década de 60 no tempo do Professor Lefevre – fundador inconteste da Neuropediatria brasileira – fez história nessa área e até hoje ninguém se aproximou aos sues méritos e genialidade.
Era uma figura vistosa, imponente, para aparecer em qualquer das epopeias do cinema de então – de perto poderia ser  Cesar ou o Poderoso Chefão – mas, seu carisma e sua docilidade, com um jeito particular de falar,  deixava as alunas e assistentes magnetizados – a cada leito que parávamos para que ele revelasse ali suas opiniões havia um séquito de fiéis seguidoras – não era bajulação, ele não se dava a isso, era deslumbramento.
Finalzinho da manhã, encostávamos ao seu lado no corredor e o discurso político de esquerda se revelava num homem comprometido com um ideal socialista romântico – a esquerda filosófica da USP naquela ocasião

Quando vim para Campinas dei algumas aulas de neuropediatria complementadas com um filme clássico em que o Professor Lefevre expunha as técnicas de exame neurológico do recém nascido – ano após ano esse filme era exibido nas diversas turmas que passavam pela neurologia – a modernidade trouxe avanços mas não a mesma competência do Professor Lefevre em lidar com suas próprias mão o corpinho delicado dos bebês – talvez, como tudo que envelhece, as gerações de novos neurologistas nem sabem mais onde estará essa relíquia cinematográfica – pobre pais que se desfaz da experiência dos professore/médicos de antigamente

Assim que o Professor Lefevre chega a Campinas recebo um telefonema – era o Professor Spina-França, famoso pela sua rigidez germânica – queria me dar um recado particular – Professor Nubor, está em suas mão um Homem, o professor Lefevre, a quem Você deve dar toda proteção possível, não me deixe acontecer nada com ele – mil coisas se passaram na minha cabeça, o coração batendo fora do peito, as pernas desapegaram do chão, não tenho memória para lembrar sequer o título da aula – era 1976, isso diz quase tudo, e, na época trabalhava conosco o Dr. Moreira fazendo nossos eletroencefalogramas – o convoquei e pedi às preças a presença da minha esposa (nossa enfermeira na ocasião) – terminada a aula, instalamos o Professor, que mantinha sua cândida calma, no meu Galaxi LTD marrom e fomos os quatro para São Paulo. Na altura de Louveira escuto um estrondo – o Dr. Moreira disse: estourou um pneu – até hoje furar pneu nunca mais me aconteceu na vida – mas, com o Professor Levevre recomendado veementemente pelo Prof Spina, tinha de acontecer. Não adiantou termos prometido lhe darmos o máximo de proteção, foi o acaso ? justamente na Anhanguera ? – naquele tempo só passava por ali um gato pingado de vez em quando. Jamais teria forças até para sair do carro, mas, providencialmente agradeço ao Dr. Moreira até hoje – ele fez a troca e entregamos o Prof. Lefevre são e salvo – esse homem brilhante veio a falecer anos mais tarde de complicações bobas numa cirurgia cardíaca de onde milhares saem ilesos (sic)


A Consciência é tudo


A Consciência é tudo
Nubor Orlando Facure

Preciso mandar um recado a um velho amigo – o nosso admirado Ruben Alves – ele precisa dar uma passadinha no Instituto do Cérebro – parece que ainda é meu vizinho - para um dedinho de proza, para pormos em dia nossos assuntos de “filosofia popular”. Não seja ingrato comigo Ruben, afinal eu ti livrei daquela ciática que ti prostou no leito e recurvou sua espinhela de cima em baixo – e, ainda mais, com todo aquele seu medo, fui eu quem ti livrou da faca rígida, medonha  e afiada da cirurgia – ainda ti vejo gemente,  trêmulo e “discaderado”

Nossa última aula com o Ruben Alves foi sobre a “consciência” – ele deixa todo mundo sem respirar para não se perder nenhuma palavra, ditas com aquele jeito manso, mineiro que só ele sabe dizer.  Os olhos do público parecem saltar das órbitas, o Ruben gesticula no rosto, no sorriso sutil, no olhar de espanto, é seu rosto quem pergunta, duvida, debocha e vai tirando tudo das suas caixas de ferramentas e de brinquedos

Fiz-lhe uma única pergunta
Olha aqui Ruben, nós neurologista estudamos a consciência na sua superficialidade e na sua profundidade – a gente fica acordado, atento, desperto ou sonolento, trespassado, torporoso ou comatoso, se aproximando da morte. No entanto, os místicos lá nas montanhas do Tibét, quase encostand no Everest, meditam para nos dizerem que eles “expandem a consciência” – alcançam assim outras paisagens e outras propriedades das coisas – como Você vê isso, expandir a consciência?

Disse-nos o Ruben:
“Expandir a consciência” nós lá em Minas já fazemos ha muito tempo
Ruben, Você endoidou, nos explique como é isso.
Pois é, quando a gente está pescando, na beira do Rio Doce, um “cumpadre” diz pra gente – olha lá, logo ali ao longe, pertinho daquele tronco na beira do rio, está saltando peixe, e “dos bão”, ele pula para pegar algum inseto desprevenido ou bobo, onde já se viu voar pertinho das águas desse rio piscoso assim?
Você então não pode olhar pro tronco, finge que não está interessado, deixa seus olhos ver de “isgueio”, deixa sua Alma ir até lá – é assim que em Minas a gente “expende a consciência”

Bem que eu suspeitava quando eu conheci as montanhas da Serra da Canastra lá em Mina Gerais, logo depois de Araxá. Há uma coisa mística que não fica nada a dever ao Tibet com toda sua majestade – não temos a neve daqueles picos grandiosos, mas, meditar por meditar o mineiro vive fazendo nas beiras dos rios expandindo a consciência pelas suas beiradas onde um tronco amoita os peixes graúdos