A origem da consciência
Nubor Orlando Facure
A teoria da “evolução das espécies” de Charles Darwin (1805-1882) provocou um dos maiores choques cultural da humanidade e suas conseqüências ainda estão longe de se esgotarem. Além dos aspectos biológicos com que foi inicialmente exposta pelo seu criador podemos percebê-la em diversos outros campos onde se manifesta a vida1. Não seria exagero questionarmos se a evolução poderia ser reconhecida na “gênese das idéias”, capacidade que dá ao homem de hoje a sua supremacia na natureza. Nesse caso, poderíamos questionar se a “evolução das idéias” ocorreu dentro de determinados princípios e se teria sofrido uma seleção adaptativa como a que ocorreu na diferenciação anatômica, fisiológica e comportamental das espécies.
O famoso psicólogo suíço, Jean Piaget, estudou a inteligência sugerindo a ocorrência de fases que acompanham o desenvolvimento da criança. Essa e outras interpretações tem sido motivo de estudos exaustivos nas diversas áreas das neurociências2. Estudos da psicologia evolucionista sugerem que um chimpanzé adulto não ultrapassa a etapa sensório-motora que corresponde a uma criança de três anos, mesmo assim, temos que reconhecer que o seu repertório comportamental é muito vasto, nos permitindo conjeturar que eles tenham “idéias” com uma gama muito variada de pensamentos3.
Podemos reconhecer, facilmente, as fases e os diferentes “níveis hierárquicos” na construção das idéias que nos dias de hoje atestam nossa racionalidade. Toda “hierarquia” pressupõe níveis de maior ou menor organização e possibilita a divisão em categorias que variam na sua complexidade. Convêm reconhecer as “idéias” como produtos de desejos e intenções construídas por pensamentos. A complexidade, maior ou menor que se revela nas idéias, é que nos permite ver nelas uma manifesta hierarquia.
Nossa sugestão é propor uma leitura por extenso do percurso que o “princípio inteligente” fez, animando todos os seres vivos, desde suas expressões mais primitivas até seu mais alto nível na espécie humana. Poderíamos ver aqui, mesmo que numa identificação arbritária, as diversas fases que percorreram os seres vivos para compor todo seu patrimônio ideatório. A idéia de sobrevivência, por exemplo, deve ter percorrido toda esta trajetória, e quase tudo que existe no nosso corpo pode ser visto como recursos que desenvolvemos para garantir esta sobrevivência. O altruísmo, que apareceu mais tarde, iniciou-se como estratégia para garantir a sobrevivência. O que antes era de interesse individual, passou, depois, a ser de interesse grupal. Convém ressaltar que os comportamentos tidos como altruístas são observado em uma ampla gama de animais, incluindo insetos, aracnídeos e vários vertebrados. O mais importante, ainda, é que sob o panorama atual da teoria evolucionista, a seleção natural age somente no nível do indivíduo e não do grupo1 Isso nos leva a uma re-interpretação do “altruísmo”, que é visto hoje como um comportamento que oferece vantagens a parentes, pois esses contêm genes em comum. Em última instância o altruísmo, pelo resultado que pretende, pode ser visto como uma forma de nepotismo genético.
Pode parecer um contra-senso falarmos de “idéias”, assim como, causaria desconfiança, apontarmos qualquer expressão de atividade psíquica nas formas mais “primitivas” (no sentido de mais antigas) de vida3. Não podemos negar, porém, que a ligação biológica entre esses seres e nós, exige, de alguma forma, que tudo que se denomina para os humanos de “psiquismo” (como sinônimo de atividade mental), tem um vínculo, uma procedência, uma preexistência, uma relação direta com o comportamento destes seres. É a identificação deste percurso contínuo da atividade “mental” que queremos acompanhar. É claro que pode nos faltar terminologia e conhecimento para explicitarmos com mais propriedade o que “pensam” estes seres “primitivos”, mas não nos é permitido deixar de identificar naquilo que eles revelam em termos de “respostas químicas”, de “reações reflexas” e de “comportamentos instintivos”, com tudo o que nós produzimos no conjunto de atitudes complexas que chamamos de humanas.
É bom lembrarmos que em termos fisiológicos, a ação que produz um determinado comportamento, é resultante de um pensamento que dirige esta ação. Isto é visível quando corro para me proteger da chuva. O mesmo fenômeno é notado no chimpanzé que corre de medo de uma cobra.4 Em ambos os casos ocorrem comportamentos de fuga com um conteúdo mental. No caso do chimpanzé, costuma-se rotulá-lo de comportamento instintivo, como se isso fosse possível de acontecer sem a construção de um repertório mental, constituído de pensamentos de medo, diante de um perigo eminente. Sua distinção em relação ao pensamento humano pode revelar quantidades e qualidades diferentes, mas não podemos excluir que existam pensamentos e suas idéias correspondentes, tanto para o homem como para o chimpanzé.
O enigma da mente
A definição de mente e sua interação com o cérebro são dilemas ainda não resolvidos pela Ciência5 . O homem compreende sua mente através das idéias que ela expressa. Para René Descartes (1596-165), nós já nascemos com um conteúdo de idéias inatas e Gottfried W.Leibniz (1646-1716) sugere a existência de mônadas na estruturação da mente6 . Para outros o conteúdo mental é produzido pelos estímulos que atravessam os nossos sentidos.
A discussão filosófica interpreta as idéias como sendo todo nosso conteúdo mental.7 Elas podem ser expressas em diversas formas de linguagem, seja num texto falado ou escrito ou numa composição artística qualquer. Em todas suas manifestações, o pensamento será sempre o veículo que expressa estas idéias8.
Não escapa do raciocínio de qualquer um de nós que as idéias podem ter graus de maior ou menor complexidade. John Locke (1632-1704), por exemplo, considera que as idéias podem ser simples ou complexas e elas seriam o resultado das nossas sensações ou das nossas reflexões.9
David Hume6 (1711-1776) diz que o pensar é pensar por meio de imagens, é imaginar e toda experiência, seja na sensação ou na imaginação, é chamada de percepção. Para Hume, as percepções são constituídas de idéias e impressões. As impressões podem se originar da experiência sensorial ou de atividades como a memória. Diz ainda Hume, que a impressão, sendo um processo interno de criação mental, pode não ter a mesma nitidez das idéias produzidas pela experiência sensorial. Ela precede sempre as idéias produzidas pelas sensações e, o que não pode ser imaginado não pode ser experimentado10
Definindo a mente, Hume a considera uma espécie de teatro, onde várias percepções fazem a sua apresentação sucessivamente. Diz Hume que não temos a menor noção do lugar onde essas cenas são representadas, nem dos materiais que as compõem. Nossa mente seria apenas uma sucessão de percepções. A humanidade seria um acervo ou uma coleção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras, numa rapidez inconcebível e se acham num estado de perpétuo fluxo ou movimento. A noção de Eu, para Hume é impossível. É um disfarce para confundir uma sucessão de idéias, com a idéia de identidade que formamos de algo que permanece igual durante um período de tempo6.
A idéia de que a mente interfere na percepção das coisas não é nova. Baruch Spinoza (1632-1677) 11, considerava que “está na natureza da mente perceber as coisas sob um certo ponto de vista atemporal”. Para Leibniz, é à disposição das mônadas, cada qual com uma disposição diferente, que dá a aparência à realidade. Cada objeto consiste de uma colônia de mônadas e o corpo humano tem uma mônada dominante, privilegiada, que mais especificamente se denomina “alma humana”.
O filósofo inglês, John Locke (1632-1704), no “Ensaio sobre o Entendimento humano de 1690”, revive a afirmação de Aristóteles, considerando a mente como uma folha de papel em branco cujo conteúdo seria preenchido pela experiência7 . Locke12 chama este conteúdo mental, de idéias, reconhecendo a existência de “idéias de sensação”, que seriam originadas da observação do mundo exterior através dos nossos sentidos e as “idéias de reflexão” que surgiriam quando a mente observa a si mesmo, é quando a mente analisa por si mesmo o seu conteúdo. Dizia Locke, que tudo o que nós conhecemos são idéias, e estas, por sua vez, retratam ou representam o mundo.
George Berkeley (1685-1753) considerava que o existir de alguma coisa é o mesmo que ser percebido6 . Isso significa dizer que os objetos que se percebe estão na própria mente. Nossa percepção visual, por exemplo, não são de coisas externas, mas simplesmente idéias que estão na mente. No seu “Princípio do Conhecimento Humano” de 1710, Berkeley, especifica sua fórmula básica de que “ser é ser percebido”. O que na verdade conhecemos e comentamos são, conteúdos mentais. Isso fica claro, por exemplo, quando ouvimos alguém. O que entendemos é o “conteúdo mental” do que ele diz, mais do que uma série de sons verbais isolados uns dos outros e depois encadeados como as contas de um colar.
Georg Hegel (1770-1831) 6 partia da história para construir seus princípios da dialética. Seu método se aplicava não só como um instrumento da teoria do conhecimento, mas diretamente como uma descrição do mundo. Todo passo dialético percorre três etapas. A uma declaração inicial se opõe uma contra declaração e, finalmente, as duas se combinam numa espécie de acordo. Penso eu que o oxigênio é vital para nossa sobrevivência, mas, num incêndio, o oxigênio pode agravar o fogo e nos comprometer a vida. Concluímos que conforme as circunstâncias, o oxigênio pode ser indispensável ou perigoso para nossas vidas. No discurso inicial, segundo a dialética de Hegel, podem se opor proposições contraditórias, mas a conclusão deve exigir um arranjo composto. A contradição pode existir no discurso inicial, mas no mundo cotidiano dos fatos não existe a contradição.
Hegel foi autor do “Fenomenologia do Espírito” publicado em 1806. Ele mostra possuir considerável percepção da mente humana. Na psicologia do desenvolvimento intelectual, a dialética é, até certo ponto, um método perspicaz de observação e aprendizado. Percebe-se que com freqüência a mente progride segundo o padrão dialético seguindo a seqüência da tese, da antítese e a conclusão da síntese. A Filosofia para Hegel é definida como o estudo da sua própria história. Foi a explicação detalhada dos acontecimentos que fez Hegel publicar a “Filosofia da História” de onde retirou sua dialética.
Creio eu que os acontecimentos e o significado de cada evento no decorrer do tempo, pode nos fazer compreender o sentido das coisas. Nesse aspecto a evolução da mente pode ser revelada numa abordagem dialética.13
A embriogênese das idéias
A estrutura anátomo-fisiológica do cérebro humano passou por todo o processo evolutivo a que se submeteram os organismos das várias espécies que a natureza produziu14 . Não é de estanhar que possamos surpreender no passado as origens da complexidade da mente humana e as idéias que a permite se expressar15
Por simplificação arbitrária, podemos fazer uma leitura didática das idéias considerando os níveis de suas complexidades. Seria uma proposta de se identificar uma “hierarquia” na construção e evolução das idéias, como se estivéssemos percorrendo os programas mais simples que serviram de base para construir os sistemas mais sofisticados que organizam a mente humana.
Analisamos seis fases:
1 - Fase química ou celular. Bactérias.
Os primeiros organismos vivos iniciaram uma troca de informações químicas com o meio exterior. 16 É a fase onde se aprimora o contato que propicia a aproximação ou a fuga, mediadas exclusivamente por reações químicas. Um animal constituído de uma única célula tem capacidade de detectar nas suas vizinhanças a presença de substâncias nutritivas e de realizar movimentos em direção a essas substâncias que ele incorpora em sua estrutura17 . Uma ameba, constituída por uma única célula, pode reagir, fugindo de uma picada com uma agulha ou absorver um fragmento químico que a alimenta. Essa mesma atitude continua a existir numa célula do nosso estômago ou de uma colônia de fungos.
No corpo humano, existem 250 tipos diferentes de células e é através da linguagem química que cada uma delas se comunica, entre si e com o meio exterior18 . Nossa atividade mental é indispensável para essa orquestração, embora nossa consciência participe muito pouco dessa atividade, vindo a si dar conta dela, nas ocasiões em que as doenças rompem a homeostase e a harmonia dos órgãos.
É extraordinário como o ovário da mulher é capaz de liberar mensalmente uma célula reprodutora, escolhida entre inúmeras outras. Não se sabe por qual mecanismo é feita essa escolha, e por mais simples que possa parecer, em cada mês é um ovário diferente que fornece o óvulo.
No quadro das redes neurais a complexidade da comunicação química e elétrica é tão extraordinária que permite aos materialistas pensarem que é ali que nascem todas as nossas idéias5 . O perfume de uma flor que afeta a química das nossas células olfativas é capaz de nos provocar lembranças há muito tempo sepultadas nas nossas memórias da adolescência. A atuação de cocaína nos neurônios é tremendamente devastadora para a personalidade do indivíduo viciado nesta droga. Um pensamento de cólera pode desencadear a produção de substâncias pelas nossas glândulas, com efeito, devastador para nosso organismo.
A hipófise tem mais ou menos o tamanho de uma ervilha e, mesmo assim é capaz de orquestrar uma dezena de hormônios que regulam glândulas esparramadas pelo nosso organismo.
2 - Fase reflexa: animais invertebrados.
Após a fase química e no momento em que uma célula reconhece a presença de outras células vizinhas, construiu-se uma organização que passou a distribuir tarefas. Foi criado pela “idéia” do grupo celular, um sistema de estímulo-resposta caracterizado, tipicamente, pela expressão de um determinado comportamento reativo. Essa reação pode ser tão simples como um movimento corporal ou uma divisão celular. Outras vezes são complexas expressando fuga ou aproximação.
Nesse nível, as condições para se produzir um aprendizado ainda são precárias, mas, a programação genética herdada permite a essas espécies primitivas reproduzirem a mesma resposta sistematicamente e organizarem os seus instintos. Uma lesma do mar (aplísia) não é capaz de aprender a sair de um labirinto, mas reage diante de uma ameaça, expulsando um jato de tinta que confunde o predador 19.
O instinto cria uma fixação de comportamento, mas, às vezes, esta falta de flexibilidade pode ser danosa e comprometedora para a sobrevivência do animal20. Uma mariposa confunde a luz dos postes com a claridade da lua e morre queimada pelo calor da lâmpada. É curioso notar o quanto essa falta de flexibilidade tem perturbado a vida de todas as criaturas. As tartarugas recém nascidas, por exemplo, confundem as luzes da cidade com as estrelas vespertinas, e morrem esmagadas no asfalto. Por outro lado, é notória a competência das mulheres em lidarem com a flexibilidade das idéias a seu favor, superando com isso, o mito da inteligência masculina.
O processo fundamental nesta fase incipiente do “princípio inteligente” é sua interação com o meio. Sua fisiologia está baseada na lei de “ação e reação” onde para um determinado efeito existe uma única causa que a observação ou a experimentação pode revelar. Em termos neurológicos esta fase caminha para o desenvolvimento do arco reflexo e dos mecanismos automáticos ligados aos núcleos da base. Estas estruturas estão intimamente ligadas à sobrevivência. Organizam-se colônias multicelulares e a reprodução é por divisão celular sem qualquer divisão sexual A partir daqui serão desenvolvidos objetivos mais sofisticados para aproveitar melhor os mecanismos de aproximação ou fuga. Uma libélula é capaz de responder a estímulos químicos de uma parceira sexual situada há quilômetros de distância.
Diversos órgãos do nosso corpo estão em constante atividade dirigida por um sistema nervoso totalmente autônomo. Este sistema funciona sob controle de atividade química de neurotransmissores que os reflexos nervosos ao nível dessas vísceras liberam. A “hidra dos aquários” é um dos animais que possui o sistema nervoso mais simples que conhecemos e convém destacar que com a criação das primeiras redes neurais, teve início o que podemos chamar de linguagem interna.
3 - Nível das proto-idéias: peixes, répteis, anfíbios e aves.
Têm início os automatismos. Desenvolve-se aqui a organização de sociedades, formação de agrupamentos e construção de abrigos. Um animal nessa fase já tem “consciência” da existência do outro. Na constituição das famílias começam a aparecer “idéias” de proteção dos descendentes e acúmulo de alimentos para garantir a escassez. Os pais têm compromissos na alimentação das suas crias. As relações com o meio exterior ficam mais complexas. Aparecem as noções de esquema corporal vital para o animal aprender a associar as suas dimensões em relação ao ambiente, ao tamanho dos seus rivais e o quanto pode estender suas patas para alcançar as suas presas. Desenvolvem-se a orientação no tempo e no espaço indispensáveis aos ritmos biológicos circadianos. Aves e peixes fazem jornadas quilométricas mapeando e depois memorizando as sinalizações que encontram na trajetória percorrida durante as migrações. Aparece um verdadeiro aprendizado no qual o conhecimento adquirido é transmitido de uma geração para outra. Isso pode ser visto na construção de tocas, de ninhos ou mesmo nos gestos que as aves usam para voar. Na verdade todas essas atividades não são exclusividades dos vertebrados, varias espécies de insetos já fazem exatamente a mesma coisa milhões de anos antes1 .
4 - Nível integrativo ou associativo: mamíferos “inferiores” e primatas.
Aqui a aquisição de conhecimento se completa com a possibilidade de ser este conhecimento transmitido às gerações futuras. Varias funções psíquicas são agregadas para a sua estruturação. Compõe-se, por exemplo, da fixação da atenção, das respostas emocionais e da memorização. Elas se caracterizam pela interação com o ambiente e pela formação do conhecimento.
O animal consegue desenvolver um comportamento comprovadamente inteligente21. O macaco utiliza-se de instrumentos que lhe facilitam o acesso a uma fruta que os braços se mostram curtos para alcançar. Comportamentos altruísticos facilitam a sobrevivência de membros do grupo3 .
5 - Nível de aquisição da consciência do Eu: humanos
Quando falamos de consciência do Eu, temos a impressão de que esse Eu parece ser alguém que está sempre conosco, exatamente onde estamos e dentro de nós. A minha sombra não é o meu Eu, nem o é as imagens que vejo nas minhas memórias. Ali estão apenas as minhas lembranças.
É extensa a literatura que descreve as características que diferenciam o comportamento do homem em relação aos outros animais22 . Diz-se que o homem é o único animal que perdoa. Só ele é capaz de sorrir e de dar a vida para salvar seu filho (pesquisas recentes constatam que insetos, aracnídeos e outros vertebrados também podem exibir esse comportamento). O homem é o único animal cujos medos são capazes de criar supertições23 .
A mente humana incorporou todos os processos de linguagem que a evolução do nosso organismo nos possibilitou acumular. Nossas “idéias” passaram a dar um significado a cada objeto. Esse significado passou a ser reconhecido por símbolos. O pensamento começou a se expressar simbolicamente por palavras construindo uma linguagem a partir da qual a humanidade construiu sua cultura24.
A aquisição da linguagem falada foi um processo que hoje está tão arraigado em nossa mente, que nos parece ser impossível mentalizarmos qualquer idéia sem o uso de palavras25 . Todos nós, porém, nos comunicamos, tanto interna como externamente, com diversas outras formas de linguagem. Nossos medos e nossas crenças, comumente, não usam palavras para se manifestarem em nós. As expressões corporais são umas das mais eficientes formas de comunicação que também não se serve de palavras. Qualquer artista de teatro sabe que nosso corpo fala pelos gestos. A linguagem corporal é tremendamente mais rica e eficiente que a linguagem verbal. As palavras nunca conseguem expressar toda força de uma grande emoção enunciada por gestos.
A consciência dos nossos atos corre em paralelo com uma série de gestos que podemos realizar inconscientemente11. Já discorri sobre o que chamei de inconsciente neurológico dando exemplos que ilustram esta atividade. Diversas funções cerebrais estão intimamente ligadas à consciência. É fácil percebermos que o nosso nível de consciência está ligado ao esforço que imprimimos à atenção. Quanto à qualidade da consciência, essa depende do material contido nas nossas memórias26 .
Nossa consciência é limitada pelos recursos que o cérebro pode lhe oferecer. Em raras situações o desdobramento da consciência pode ser registrado no cérebro e nessas situações tomamos contato direto com as informações procedentes de outras dimensões e que ficaram impressas nos circuitos da memória física.
A espiritualidade é tida como um atributo de nossa personalidade. Ela se desenvolveu no curso da evolução a partir de idéias primitivas de temores diante das ameaças que as forças da Natureza pareciam nos ameaçar. Depois, aprendemos a estabelecer as trocas com a divindade e criamos os rituais religiosos com a idéia de nos proteger8 .
6 - Nível transcendente ou de espiritualização: “místicos” e missionários.
Compreende o período da expansão da consciência. O neurologista está habituado a analisar os níveis de consciência no seu sentido de maior ou menor profundidade. Esses níveis variam desde o estado de alerta, a sonolência, o torpor e o coma, quando então a consciência está abolida em graus de maior ou menor profundidade27 . A visão neuropsicológica moderna nos permite ver as alterações da consciência em expressões de maior ou menor amplitude. A expansão da consciência nos permite acessar, voluntária ou involuntariamente, os chamados “estados alterados da consciência”, com a possibilidade de transitar por informações de outras dimensões.
No nosso atual estágio evolutivo, o que compreendemos destes “outros planos da vida”, ainda são “idéias” elaboradas por construções fragmentárias. Quase sempre sem tradução completa nas expressões comuns da linguagem humana. Elas podem ser aceitas, transmitidas, mas não são compreendidas em toda sua extensão. É preciso ver nelas o subentendido que o aparente não revela. Expressam conceitos como: Deus, a criação, a eternidade e o infinito. Caracterizam-se por serem adquiridas como uma “revelação”. Podem ser interpretadas como sendo uma “vivência psíquica”. Uma das suas características é a sua generalidade. Grandes místicos do passado conseguiram expressá-las nos textos dos seus pensamentos memoráveis. Ao recordar algumas destas idéias podemos perceber a harmonia com que combinam simplicidade com complexidade: “o tudo está em tudo”, “tudo é movimento”, “o cosmo está no homem”, “o não visto é o visível próximo”. Aqui se descobre a complexidade do mundo, a extensão das experiências que nossas mentes já acumulam. E, tanto efeito como causa, devem ser vistos no plural28 .
Uma visão psicológica
As idéias têm a propriedade de revelar a atividade mental que estamos desenvolvendo. Isso não significa que elas sejam sempre expressas na linguagem falada que estamos habituados a expressar. Um gesto ou a expressão de um olhar nos mostra que o corpo fala, e às vezes, fala mais que as palavras29 .
Penso que o conteúdo da nossa mente não é preenchido apenas por idéias, conforme afirmam alguns filósofos12 . O que torna muito mais complexa as possibilidades de nos expressarmos. Todos nós sabemos, que o conteúdo do inconsciente, é muito rico de imagens que as idéias se mantém por muito tempo desordenadas. Conhecemos a dificuldade em traduzirmos este texto escondido no inconsciente. Muitas doenças servem de linguagem traumática para expressar o que temos ali dentro.
À medida que vamos estabelecendo idéias bem definidas, vamos acumulando um conhecimento que gradativamente constrói a nossa cultura. Outras idéias são aceitas de modo dogmático estabelecendo as crenças e criando os mitos. As crenças podem se adquirir a partir de uma experiência subjetiva, difícil de ser transmitida para os outros25.
No diálogo interior que fazemos com a nossa própria consciência estamos habituados a construir desejos e intenções que podem se revelar no ambiente que nos cerca através de palavras ou de gestos. Entendo a consciência como a “propriedade” que nos permite perceber a realidade interna e externa.
No que se refere ao mundo exterior, é sempre mais fácil construirmos idéias que descrevam o que percebemos a respeito dele. É uma tarefa mais leve identificarmos e descrevermos os objetos situados fora de nós. Quanto ao nosso mundo interior as idéias são insuficientes para descrevê-lo. Nossas impressões e reflexões são sempre mais fortes do que os pensamentos que elaboramos sobre elas. Estamos habituados a traduzir nossos pensamentos em palavras, e as emoções que nos afetam, podem ser de tal magnitude que nos faltem palavras para descreve-las30 . Outras vezes, nossa surpresa é tão grande que nos faltam idéias para interpretar os fatos que nos abalam29 .
Acreditamos que nossa consciência é preenchida de pensamentos e idéias incessantes, parecendo-nos a todos que é impossível pararmos de pensar11 . Os místicos, habituados a se concentrarem em meditações profundas, descrevem a consciência como um fluxo incessante de energia e não necessariamente de idéias. Nesse estágio, a consciência se apropria da essência das coisas e atinge outras realidades.
No processo de aquisição das idéias e da experiência que a evolução sedimentou, podemos perceber que a mente humana é herdeira, de todas as formas de conhecimento de cada célula, cada agrupamento celular e cada organismo que a evolução nos permitiu transitar, conduzindo, o “princípio inteligente”. É perfeitamente possível identificarmos, em expressões do comportamento humano, toda esta riqueza de idéias que a vida, expressa em tão grande diversidade biológica, conseguiu fixar em nossa mente.
A atividade celular em qualquer parte do nosso corpo ainda obedece à mesma química das células dos primeiros animais que nos antecederam27 . Os reflexos primitivos permanecem em total independência na sinfonia dos nossos órgãos internos. Os instintos e automatismos de uma abelha que constrói seus favos ou de uma libélula que localiza sua fêmea permanecem vivos no homem e na mulher que constroem seus sonhos. Quase todos nós já vivemos a experiência de usar um reflexo de fuga para dar um salto antes que alguém nos atropele. O instinto de sobrevivência nos faz agasalharmos para não sermos surpreendidos pelo frio. Muitas vezes caminhamos automaticamente por ruas que já conhecemos sem precisarmos nos dar conta dos obstáculos que elas contém. É instintiva a necessidade de correr quando um animal nos ameaça ou quando o cheiro de fumaça é alertado pelo grito de que há fogo por perto. Com esses exemplos estamos ressaltando que a química celular, os reflexos, os automatismos, o comportamentos instintivos adquiridos nos cenários da vida, permanecem convivendo conosco em parceria com a consciência, permitindo que através dela, toda nossa atividade seja comprometida com nossa responsabilidade.
A psicopatologia
A doença mental tem sido estudada a partir de variadas interpretações31,32 . Não pretendemos nos deter nesse histórico deixando apenas registrado que, na atualidade, ainda prevalecem duas visões que tentam compreender os fundamentos da psicopatologia humana33. Uma organicista e outra psicodinâmica. Qualquer que seja nossa abordagem, permanecerá no palco das manifestações clínicas, uma perturbação no contexto das idéias que cada indivíduo revela nos seus desvios mentais.
Como nos parece que as idéias foram construídas a partir de um processo evolutivo acrescentando níveis de aquisições hierarquizadas, creio que poderíamos dar uma olhada no discurso das doenças mentais a partir da idéias que revelam o quadro clínico destas manifestações. Nossa proposta é apenas um ensaio despretensioso.
No caso do autista, podemos enxergá-lo fixado em um nível de reação extremamente limitado que não lhe permite interagir adequadamente com o meio exterior. Sua capacidade de gerar respostas aos estímulos exteriores está fortemente comprometida. Sua vida se limita a reflexos simples sem os componentes de associação entre os diversos módulos de atividade cerebral.
No transtorno obsessivo compulsivo as atitudes estão fixadas em automatismos primários cuja repetição é impositiva para o paciente.
Na esquizofrenia ocorre uma regressão violenta na capacidade de construir idéias coerentes com a realidade tanto do meio externo quanto interno32 . O paciente tem uma aparência de constante sensação de hostilidade. Suas capacidades parece se limitarem a reações de fuga, tal qual um animal onde as “idéias” se limitam à atividade celular. Os estímulos exteriores não têm competência para gerar um padrão de resposta integrada.
A Hierarquia das idéias na Formação da Consciência
Diversos fatores contribuíram para que o estudo da consciência voltasse a despertar interesse da Ciência11 . Este estímulo se iniciou com a “Década do Cérebro” e o estudo das funções cerebrais através das imagens com a Tomografia de Pósitrons e a Ressonância Funcional.
O neurologista Antônio Damásio e o físico Francis Crick são dois exemplos atuais de estudiosos que se propuseram a esclarecer o “enigma da consciência”11 . Em ambos persiste a visão materialista que reconhece no cérebro e no arranjo dos seus neurônios a capacidade de produzir a mente e estabelecer as condições que constrói a consciência. Os elementos envolvidos são outros, mas é o mesmo conceito de que se serve Thomas Hobbes (1588-1679), quando publicou o Leviatã em 1651, afirmando que a realidade interna se resume em movimento e que nossos pensamentos e nossas paixões são efeitos do movimento da matéria.
No modelo materialista, utilizado pelas escolas neurológicas da atualidade, temos de lidar com redes de neurônios e tentar conhecer o mínimo de estrutura cerebral que é exigida para permitir a determinado animal permanecer consciente33 . Esta resposta não é difícil quando estivermos procurando apenas o que a consciência representa em termos de estarmos alerta, em contato com o meio exterior. Teremos muito mais dificuldade quando discutirmos a extensão total da consciência, o significado do Eu, o grau de apreensão que podemos fazer de uma determinada situação ou mesmo do ambiente que afeta a nossa consciência. Num sistema organizado e de alta complexidade como o cérebro, é perfeitamente possível estabelecer os fundamentos neurofisiológicos para uma expressão limitada da consciência humana.
Para os que aceitam o paradigma espiritualista, sabemos que nossa Alma, devido a suas múltiplas existências, tem um conteúdo de conhecimento muito maior do que o que o cérebro físico possa revelar34 . É exatamente esta limitação apresentada pelo cérebro que nos impede de identificar uma lei abrangente, capaz de apreender toda fenomenologia da consciência.
Ao invés de se tentar equacionar o “enigma da consciência” pela estrutura das redes neurais e seus sistemas de organização, estamos apresentando uma via de acesso à consciência, pela elaboração e hierarquização das idéias13 . Ao estabelecermos um fundamento hierárquico para suas expressões, podemos questionar quais conteúdos e significados das idéias que seriam compatíveis com o aparecimento da consciência. Dessa forma, quando aumentar nosso conhecimento sobre os diversos aspectos da consciência, os fundamentos serão sempre os mesmos, irão variar apenas o significado das idéias necessárias para explicar determinada apresentação da consciência. Para estarmos alertas e perceptivos em relação ao ambiente, precisamos de um determinado padrão ideatório e para estarmos consciente do Eu, nos é exigido um outro determinado padrão de idéias. Para a expansão da consciência a outros planos da vida, são exigidos os padrões transcendentes de idéias. Os ganhos anatômicos do cérebro foram adquiridos, presumivelmente, pelo desenvolvimento de uma crescente constelação de idéias que a evolução estimulou nos desafios da vida34.
A importância das idéias se revela na percepção que temos da realidade, bem como, nas ações que executamos acreditando serem procedentes de nossa vontade. Ambas, nada mais são que impressões do imaginário que a evolução nos permitiu construir na consciência.
domingo, 8 de março de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Tem passado aqui e ficado um tempos e tempos navegando por entre tantas palavras, que ma fazem pensar, querer sempre ler mais!
ResponderExcluirVim até aqui indicada pela Katia, fui aluna dela!
Voltarei e o indecarei sempre!
Obrigada!