Memórias? Não dá para acreditar nelas
Nubor Orlando Facure
1 - O que é memória?
A maioria das pessoas pensa na memória como um talento mal distribuído e não há quem não queira aumentar suas habilidades. Memória, na verdade, precisa ser dita sempre no plural, “memórias”. Temos vários tipos de memória e em várias situações elas estão envolvidas de uma maneira que nem sempre suspeitamos. Existe uma fisiologia da memória que ainda é pouco divulgada, iremos falar sobre algumas dessas particularidades.
Damos pouca importância às falhas e traições que as memórias nos pregam, não temos o menor pudor em acreditar numa memória falsa desde que seja de nossa autoria, e, o que mais nos incomoda, são os esquecimentos inoportunos.
A memória é uma “reconstrução” e não uma “reprodução“ . A cada vez que descrevemos um evento que testemunhamos, o fazemos de modo diferente. Estamos sempre reescrevendo a história e, é nosso estado de humor quem mais interfere nessa descrição.
2 - Teoria da Interferência - uma memória empurra a outra
Vários testes confirmam que ao retermos uma informação, sofremos a interferência do que nos acontece antes ou depois dessa informação. Um exemplo simples:
Vamos testar sua capacidade de reter uma lista de palavras – informo antes que serão nomes de frutas, essa informação prévia distorce claramente o resultado
Agora apresento dez nomes de flores e a seguir leio um texto onde são citadas inúmeras flores. Você ficará confuso com a mistura de nomes.
Você assiste a uma aula de literatura espanhola. Uma hora depois, a aula seguinte é de literatura francesa. Uma semana depois você percebe que sua memória mistura o conteúdo de uma e outra aula.
3 – A memória inclui as sensações e principalmente as percepções. Quando vejo um objeto tenho uma sensação visual, mas, se eu sei o que é, acrescento uma percepção consciente – isso está ligado ao meu conhecimento prévio. A percepção e o conhecimento reforçam a memória. Saber o que estou vendo me facilita lembrar disso depois. Ou, dito em outros termos: para que eu me lembre de você é melhor que eu saiba quem és.
4 – A percepção de um objeto inclui o espaço, o ambiente em torno do objeto, ampliando nossa capacidade de retenção. É bom prestarmos atenção nos detalhes do entorno do objeto que queremos fixar na memória. É por isso que nossa memória visual é mais competente que a memória auditiva. O volume de informações detectados pela visão é muito maior que pela audição.
5 – A memória no retrato rouba a cena
Nas lembranças da formatura recordo-me, ainda, de alguns colegas, do abraço afetuoso do paraninfo na entrega do diploma e da orquestra que tocava no baile daquela noite de dezembro. Dois ou três fotógrafos registravam cada cena.
Fato semelhante ocorre com as festas de casamento das duas filhas. Lembro-me do momento em que assinei documentos, da mesa onde me assentei, e de um ou outro convidado. Foram momentos que os fotógrafos se esmeravam em fixar.
Passam-se os anos e, vez por outra, as fotos são mostradas para alegria de amigos e parentes que testemunharam ao vivo essas cenas.
Agora, nas minhas lembranças, ficaram muito mais as imagens retratadas do que o cenário que participei nos dias de cada uma dessas festas tão importantes para mim. As cenas reais praticamente apagaram-se das minhas memórias, as dos retratos não, elas estão melhor fixadas e até com certa precisão que não tinha notado nas festas.
A explicação é fácil. As cenas vividas só ocorreram uma vez e das imagens dos retratos foram vistas várias vezes e em diferentes ocasiões, justificando porque, hoje, cada festa está mais fixadas nas imagens dos retratos do que nas cenas que participamos na realidade. A Teoria da interferência, também, justifica parte dessa troca. Devemos viver cada momento com grande intensidade e de maneira saudável porque elas ocorrerão uma única vez e os retratos vão dar outra versão à realidade vivida.
7 – A amnésia da infância
Um exercício que cada um de nós pode fazer é tentar lembrar da memória mais precoce que tem. Uma queda aos 4 anos, um susto com um animal que o ameaçou no aniversário de 5 anos ou a morte do pai aos 3 anos.
É possível termos memória de episódios da vida só a partir dos 3 anos de idade. Nessa ocasião está presente nosso aparelho psíquico constituindo o “Self“. A criança já sabe o que é dela (o seu carrinho ou o seu chinelinho) e consegue ver, no espelho, uma fita no seu cabelo, os óculos que experimenta e o baton que foi passado nos lábios. Aquilo que está no espelho ela sabe que, também está nela.
É provável que muitas dessas memória precoces tenham uma mistura de verdades e falsidades involuntárias. È possível que relatos da mãe ou de outros familiares que repetem façanhas da criança acabem fixando memórias fantasiosa, parcialmente verdade e fantasia.
8 – A memória do amanhã
Sempre que falamos de memória pensamos em lembranças de coisas ou acontecimentos já ocorridos. A memória à primeira vista está ligada ao passado. Isso não é inteiramente verdadeiro. A memória do futuro, do que eu vou fazer amanhã é extremamente importante. Esse tipo de memória tem pouco conteúdo de informação, quase sempre eu preciso apenas lembrar de cumprir compromissos. Ela está ligada ao tempo, por exemplo, quando tenho um encontro para as 5 horas da tarde. Está, de outras vezes, presa ao espaço, na minha ida ao supermercado quando tenho de comprar margarina.
A memória do amanhã me torna mais ou menos respeitável pela minha capacidade de cumprir as promessas que fiz ontem.
9 – A memória sobrescrita
Essa é outra forma na qual a Teoria da interferência parece se revelar adequada. Muitas pessoas tem o hábito de escrever seu diário. Mais freqüentemente são adolescentes que pensam registrar acontecimentos que o afetaram emocionalmente. E é esse colorido emocional quem afeta a precisão das memórias ali registradas. Uma vez escrito o diário, fica ali um registro do acontecimento descrito, com as imprecisões naturais e a opinião pessoal que o escritor teve do momento relatado. Algum tempo depois esse texto pode ser relido quantas vezes se desejar. Com isso ficará impresso uma memorização mais condizente ao texto e cada vez mais distante do acontecimento real. O diário cria um novo evento interferindo na memória inicial do fato.
10 - A memória de Instantes
A queda do muro de Berlim, o assassinato do presidente Kennedy, a destruição das Torres Gêmeas, foram acontecimentos que abalaram a opinião pública internacional. A emoção é tão forte que fixa em nossas memórias o instante preciso em que fomos informados dessas notícias. Será que esse tipo de acontecimento ocupa algum lugar especial no cérebro ou utiliza algum mecanismo diferente para se fixar?
O que parece mais provável é que essas notícias são repetidas à exaustão pela mídia e é simplesmente o processo de repetição que não nos permite esquecê-las. Os mecanismos são os mesmos, e o que as fixa é a recitação frequente.
11 - Testemunha ocular
Eu me lembro de ter visto vários parentes no casamento da minha filha. Já se passaram alguns anos e quando tento lembrar quem estava lá esqueço alguns e acrescento outros. Independente do tempo decorrido, as descrições do que a gente vê não são tão verdadeiras quanto possam parecer. Na verdade o que a gente memoriza é o “que pensa ter visto” e não o que realmente os olhos viram.
Qualquer um de nós se sente confortável em relatar um acontecimento quando fomos testemunha ocular. Incidentes familiares são freqüentemente repetidos por alguém que estava lá. Uma briga na festa de casamento, uma queda na piscina, um vestido manchado pelo molho da macarronada e mil acontecimentos que marcam a história de todas as famílias. O testemunha ocular para efeito pericial, identificando, por exemplo um assaltante criminoso, assume extrema gravidade pela fragilidade com que se sabe sobre o mecanismo da memória na “testemunha ocular“.
Lembrar com fidelidade do acontecimento traumático que vimos depende de vários fatores, por exemplo: O que foi que eu vi? Um ou mais de um assaltantes? Eles estavam armados? O que me emocionou naquele instante? Cheguei a ver a arma que usava? Para quem estou contando o que vi? Para um delegado ou para um amigo?
O efeito da pergunta no inquérito afeta a descrição da testemunha ocular. Quando se questiona - você viu o bandido? - já está implícita uma qualificação do que foi visto. Será mais coerente que a pergunta formulada questione apenas quem e o que foi visto para deixar o julgamento por conta de quem testemunhou.
Da próxima vez que alguém lhe disser: “eu vi, eu estava lá” você deve considerar as controvérsias da testemunha ocular - ela pode falhar.
domingo, 8 de novembro de 2009
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